Vol. 5 Núm. 2 (2014): Dossiê Direitos Humanos e Multiculturalismo

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Os textos que compõem este Dossiê foram elaborados durante o segundo semestre de 2013, no contexto da disciplina Pesquisa Orientada em Filosofia IV do curso de Bacharelado em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). As características desta disciplina permitem às/aos alunas/os desenvolver uma pesquisa autônoma e aprofundada sob a orientação temática estabelecida pelo professor no início do semestre. Para este momento, no quadro de uma disciplina de caráter prático, foram propostas as questões pertinentes à ética global em suas possíveis nuances, tomando como pano de fundo as necessidades criadas pela contemporaneidade, cujos elementos supõem, entre outras coisas, um intenso intercâmbio cultural, uma globalização cultural, social e econômica, e uma responsabilização ético-política além-fronteiras. A questão norteadora das pesquisas estava inicialmente voltada às propostas cosmopolitas de uma ética global: sua necessidade, possibilidade e efetividade, sendo este o eixo central dos debates estabelecidos pela necessidade (ou não) de uma “ética global” ela mesma. Gravitando em torno desta proposta estavam ainda, inevitavelmente, os temas e problemas que aí aparecem concomitante ou concorrentemente: a problemática do multiculturalismo, a necessidade de uma justiça global, a necessidade de uma ética de assistência, as lutas por reconhecimento, o reconhecimento da igualdade e da diferença, a manutenção dos direitos humanos apesar da manutenção das diferenças culturais, a questão do patriotismo e da universalidade, e questões de base ligadas às noções de “cidadania”, “humanidade” e “dignidade”.

Diante da complexidade do tema, estava claro que o traçado de um amplo e exaustivo panorama seria irrealizável. Com o que alguns pontos da questão seriam priorizados sobre outros, cabendo a cada um investigar um de seus aspectos em particular, de acordo com uma escolha bastante pessoal - embora sempre justificada.

Assim, tomando como ponto de partida uma posição prévia a todo debate prático, a nível moral e político, o texto Ensaio sobre a natureza humana: Uma reflexão a partir de Abraham Maslow, de Jonas Muriel Backendorf, propõe uma investigação acerca da natureza humana a partir dos estudos psicológicos de Abraham Maslow, em vista de um aprimoramento moral da humanidade que pudesse prescindir, ao fim e ao cabo, de soluções regulamentadas e institucionalizadas para uma “convivência pacífica entre pessoas e povos”; alcançando uma maturidade psicológica que pudesse coexistir harmoniosamente com uma sociedade também mais madura, o indivíduo educado a realizar plenamente os seus potenciais, seus valores e sua integridade é o exemplo por excelência daquilo de que é capaz a natureza humana quando os seus interesses convergem com os interesses de todos - uma leitura contemporânea, mais próxima da psicologia do que propriamente da filosofia, de alguns pressupostos aristotélicos relativos ao cumprimento racional do caráter excelente, que não o pode ser em detrimento de sua função heurística e política.

Para além de uma proposta otimista e para além de uma tarefa de base relativamente àquilo que nos constituiria humanamente, ainda que potencialmente, pela paz, o diagnóstico do conflito é patente e inescapável, em todos os níveis. Mariane Gehlen Perin inquieta-se em compreender a gênese das diferentes posições defendidas contemporaneamente no escopo da própria ética global. Em seu texto A disputa entre cosmopolitismo, patriotismo e nacionalismo: Uma introdução geral ao tema trata de compreender estas noções em específico, num contexto histórico e filosófico, em prol de um entendimento alargado das pretensões de cada perspectiva nos debates de autoras/es contemporâneas/os tais como Habermas, Benhabib, Nussbaum, Rorty e Taylor, entre outros. O desenvolvimento do conceito de “cosmopolitismo”, desde as suas origens cínicas e estoicas, parece responder a uma preocupação de ordem moral mais do que política, mas que não deixa de influenciar as propostas teóricas e práticas, sobretudo para aquelas/es autoras/es preocupadas/os com o papel da educação na construção do significado de uma “humanidade compartilhada” (Nussbaum, principalmente). Como contraponto a esta perspectiva, Mariane traça um detalhado panorama acerca do desenvolvimento dos termos de “patriotismo” e “nacionalismo” e os riscos aí representados pela radicalidade do totalitarismo e do chauvinismo - um panorama que é de extrema relevância quando se trata de compreender as dificuldades enfrentadas pelo ensejo de uma “ética global”.

O diagnóstico do conflito permeia igualmente o texto de Guilherme Pinto Ravazi, A sociedade dos povos como solução dos conflitos internacionais. Diante do quadro belicoso das relações internacionais e da aparente impossibilidade de paz efetiva e duradoura, a proposta de uma Sociedade dos Povos - tal como pensada por John Rawls em O direito dos povos - é feita a partir de uma perspectiva kantiana. Trata-se, aqui, de investigar o desenvolvimento desta ideia desde o conceito de “federação de paz” tal como ele aparece n'A paz perpétua de Kant.

A questão norteadora para José Vicente Batista Wociechoski toca o ponto da efetivação e da concretude da justiça social através de uma análise dos direitos humanos - sua trajetória, seu alcance, bem como suas recorrentes violações. O texto Direitos humanos e a formação da identidade no atual paradigma cultural, aborda a conflituosa relação existente entre os direitos humanos universais, legalmente reconhecidos e garantidos desde a sua institucionalização, e a diversidade cultural, e o modo como este conflito incide sobre o reconhecimento da própria individualidade. Para o esclarecimento de tão complexo cenário, o autor investiga algumas questões de gênese nos direitos humanos – com Norberto Bobbio, principalmente – e o estado de coisas de um multiculturalismo enquanto fenômeno e enquanto proposta ético-política. O problema da construção identitária perpassa, assim, o reconhecimento da diversidade cultural frente à necessidade de universalização deste mesmo direito. Dentro desta problemática, o autor sugere como alternativa uma reflexão sobre o elemento transcultural presente em todas as sociedades, elemento que talvez nos auxiliasse a compreender a alteridade e que, assim, nos permitisse um respeito não-legalista aos direitos humanos para cada indivíduo em sua diferença.

Finalmente, o próprio conceito do “multiculturalismo” é examinado por Willian Martini, no texto O multiculturalismo e a diversidade no debate multicultural. Trata-se aqui de investigar as diferentes linhas de discurso e as diferentes propostas morais e políticas que pretendem compreender as dificuldades envolvidas no mundo contemporâneo globalizado. Figuram aqui, como autores de ponta, as análises de Charles Taylor, Will Kymlicka e Peter McLaren, para os enfoques do “multiculturalismo conservador”, “multiculturalismo humanista liberal”, “multiculturalismo liberal de esquerda” e “multiculturalismo crítico”. Do exposto, o autor percebe no multiculturalismo crítico proposto por McLaren a abordagem mais positiva a nível político, já que voltada a um projeto pedagógico em prol de uma vivência harmoniosa com a diferença. Caberia a esta educação em vista de novas relações sociais, uma profunda reflexão sobre a maneira como nós nos vemos como “uns” e “outros”.

Muitos detalhes poderiam ainda ser acrescentados à apresentação de cada um dos textos que compõe este Dossiê, e sobre a temática ela mesma, mas deixarei que falem agora por si mesmos. Para alguns destes autores a temática é já objeto de investigação continuada; para todos, no entanto, foi sem dúvida fundamental que o resultado dos seus textos pudesse figurar em uma publicação conjunta. Como ao longo da disciplina, suas perspectivas dialogam e se complementam. Um diálogo do qual a reflexão filosófica não pode prescindir em absoluto.

 

Janyne Sattler (UFSM)

Publicado: 2015-07-08